23 agosto 2010

Cartas ao coração II


Pai, de manhãzinha entrou-me uma nuvem pelo quarto.
E o seu toque esponjoso acordou-me a menta do corpo e as minhas pestanas divorciaram-se.
O teto do quarto estava mais azul e os relevos das ervas aromáticas que lá plantei já se exibiam luxuosamente aos meus olhos.
Dancei entre as cortinas que se entoalharam sobre mim; mas só até o Sol flirtar comigo e eu icendiar o coração. Com os meus fósforos de escoteiro.
Assisti a um eclipse. O coração com a coroa flamejante foi ter com as estrelas da manhã de Verão e os aviões desenharam obras abstractas no céu turquoise.
Mas eu não consegui sorrir, pai. A magnólias disseram-me para não sorrir, podia encadear as frutas que crescem nos jardins dos deuses..
Mas não faz mal; Eu guardo o sorriso para a noite a fim de guiar a Lua comigo, está bem?

17 agosto 2010

E Merda está no dicionário.


Se a escrita não existisse para mim;
iria esmurrar muralhas da China, não me ia cessar do prazer de destruir incansávelmente um glassiar do tamanho deste mundo ou do outro até sangrar das mãos para saber que posso continuar.
Ia queimar cabelos com um sopro e fatiar a lâminas bem fininhas os déspotas pérfidos que afinal são de alabastro.
Eu ia chegar aos limites que os limites não conheçem de si.
Ia explodir explosões e queimar o fogo com as suas próprias chamas.
Iria gemer ao comer os sushis e os origamis humanos feitos por mim de olhos bem abertos: há que vêr os bons espetáculos satânicos de uma vida.
As flores com que se enterram os familiares iriam ficar podres e cheirar a jarro-titã.
Ninguem ia mecher-se. Mover-se.
A raiva ia expandir-se e acordar-me o êxtase ao âmago.
Como eu queria que a escrita não existisse.

16 agosto 2010

12 agosto 2010

Verbalizações.


- Amo-te.
- Porque é que nunca ouvi isso sair da tua boca antes?
- Eu sempre te disse; mas os beijos não se ouvem.

10 agosto 2010

De molinhas às costas.


Dobrávamos os músculos, ríamos com pinturas, saltávamos do céu
E caíamos na rede dos peixes, fazendo parte de figuras.
In-animadas. A animação vinha-nos de dentro
e os senhores das pipocas viam nos olhos cegos dos clientes o trabalho por fora.
Éramos os nómadas do destino.
Assistíamos às pobres selvas enjauladas dos tigres e dos leões que pouco comiam e pastávamos o mesmo cheiro a feno fora das roulotes com televisão a pilhas. E eramos mais altos que os elefantes.
Gravámos t-shirts com as canetas de feltro baratinhas e tirámos fotos com as caras que não eram nossas.
Fomos famosos por horas, entrámos em sonhos de crianças quando não saltávamos de caixinhas-surpresa com a molinha ao fundo das costas.
Trabalhávamos de noite; dobrávamos os músculos.
Só dormiamos quando o mundo se esquecia de nós.
Nunca ninguém se esqueçeu de nós.
A nossa tenda era redonda como o mundo, sem um começo nem fim nem destino concreto.

E nunca foi preciso ir a um circo para lá estarmos.

Não durmas.


- Acendeste a luz!?
- Não. Eu estava a dormir.
- Eu também. Porque a acendeste?
- Foste tu.
- Estás parvo?
- Não. Olha para o teu coração.

04 agosto 2010

Cartas ao coração


As folhas caíam e nunca mais voltavam, no movimento-fotocópia dos teus olhos sobre a madeira tratada;
enquanto tu me contavas as histórias de acordar, as histórias da verdade.
E quando as pestanas teimavam em ajoelhar-se no meu rosto tu paravas a história enfadada e seguravas-nos com medo que o nosso barco de lençóis e almofadas naufragasse na cave do andar mais alto das lojas da moda.
Sopravas-me sempre os clichês ao ouvido enquanto a minha boca aninhava as amêndoas à língua. As amêndoas que me trazias das viagens que eu nunca sabia. Eu nunca te dizia obrigado.
Depois as aves subiram ao céu e os peixes afogaram-se na água que o ar não tem. Eu nunca chorei, mas sentia falta deles.
Sentia falta deles como na verdade nunca senti daquele teu dormir fraguementado com o sangue a querer sair de ti.
Pois agora acenam-me imagens dos vários momentos que passámos que eu não me lembro.
Não me lembro se cheguei a comer as amêndoas. Mas obrigado.