30 outubro 2010

A boca fala de que saudades tenho


Do palco, sorrisos arrebatadores que não consigo ver por ser o centro das atenções. Guiões, memorizar, deixas perdidas, tempos mortos depois interrompidos por sátiras, palmas, orgulho, fingir, ser o que não sou, ser mais um "eu", nervos, muitos nervos, e mais nervos, camarins, preparação, ensaios gerais, mais nervos ainda, convidados, espectadores, críticos com escárnio na garganta prontinho a sair, cortinas, música-fantasia, diafragmas a trabalhar, mais nervos, extravagância, medo de cair da boca de cena...

E a boca não se cala.

24 outubro 2010

Mesclas


Preenche-me o caminho com cartas de luz. Diz aos grilos para acordarem, eu preciso de música. És tão melódica, mãe, com essas rochas que quando piso fazem o som dos batuques, a água que escorre parece ser toda para mim e os bichos cantam todos os dias um ritmo novo que as árvores ainda não ouviram.


Viajamos pelos mundos das rochas, mãe? E saltamos de uma em uma para não nos sentirmos sozinhos. Eu prometo, ficamos bem. Já tens paz? Sem horizontes turvos nem montanhas para subir? Os leões do mar dormem, mãe, e eu não quero dormir. Quero ver-te cantar com as árvores e comigo, eu e tu numa auróra boreal dançante onde a pureza dos tons desce à terra.


E dormimos na neve, mãe... O para sempre sempre connosco. Quando fica mais escuro tu sopras lufadas de menta, mas acendes-nos as luzes das árvores e o mundo é nosso como nós somos teus. Ficas bem, mãe? Eu vejo agora a beleza e quero morrer assim, com esta imagem gravada na morte dos olhos. O prazer cai-me em estado líquido dos olhos, mãe. Eu nunca vi e agora tens de me levar. Para que o tempo pare e eu possa ver tudo agora, assim.

O que me escreve a Heresia


(...)
mas nós somos, desde sempre, o pecado por si só. E não há como renegar essa condição sem nos sentirmos presos. Fomentamo-nos de tentações que nos levam a prazeres, esses que recordaremos como os melhores momentos da vida. É extasiante o alívio que nos dá, saber tão bem quando é errado. E morremos porque já nascemos com o mal dentro de nós. Porque somos o pecado, porque é essa a nossa essência. Reconhecendo isso, sentimo-nos tão grandes em nós mesmos. Tu não sentes? Eu sinto-me livre e limpa. E o Inferno apresenta-se vermelho vivo à nossa frente, com tanta luxúria, preguiça e gula.
And if the Devil is the tentation itself, i'll make sex with the Devil myself.

22 outubro 2010

It's 6 AM


Daniel Merriweather toca para mim no rádio, eu sem saber como ele pôde lá caber.
O chá espera por mim, sem querer arrefecer.
O Inverno escurece-me as manhãs, permite que a preguiça de me levantar me bata na cabeça.
Cama quente, amontoados de cobertores adormecem por cima de mim.
Os sonhos ainda vagueiam e começo por lembrar-me do passado: daqueles contos que foram felizes mas que sabemos que nos fizeram um mal permanente, que nem com lixívia fugia.. O que me apertava o coração de felicidade na altura, o que me dava a satisfação diária; mas que me aperta hoje o coração de outra maneira, quando me lembro de me lembrar disso.
E o despertador toca, acorda-me do passado que estava presente na minha núvem.
Tenho medo de me perder por lá.
Mas o Merriweather toca e o chá ainda espera por mim.

17 outubro 2010

Gominhos cortados


E o cheiro, mãe?
Da panela consensada de especiarias do Japão, do Brasil e do coração
que tu punhas naquele remoinho quente em que mexias com a colher de pau com que nunca me bateste.
Eu portava-me bem à mesa, sentado atrás de ti, nas cadeiras velhas de madeira, sentindo que tu sentias o amor que punhas em todos os preparados. O cheiro impregnava-nos a cozinha toda, eu sentia-me tão quente e feliz. E se tivesse de ir ao quarto-de-banho, o cheiro ia comigo.
O banho já tomado à noite fazia sempre sentido quando me punhas o prato à frente, as labaredas de fumo aquecendo-me a cara.
E o fantástico era a possibilidade de eu poder comer esse amor que resultava sempre num prato que me dava prazer em comer.
Já não me lembro se era mais aconchegante ver-te preparares-me aquele amor no prato, se saboriar o amor que me davas todos os dias.

13 outubro 2010

Rir é a melhor sentença.


Ainda espero que saias do palco e faças da tua vida uma comédia.
Vão haver críticas, alguns tomates talvez: mas as cortinas vão estar sempre abertas para as palmas e assobios.
Não te vais recordar de todas as piadas que mandaste. Vais saber que riste de todas.
As pessoas vão chegar atrazadas aos compromissos porque queriam rir só mais um pouco contigo. E tu vais energizar os outros e a ti: vais faltar aos compromissos.
E a apoteose acaba com o típico livrete de dedicatórias a girar de mão em mão entre os convidados, no teu 50º aniversário. Mas tu não vais precisar de lê-los para saber que não te fugiu o sorriso rasgado nem um minuto da tua eterna infância.

11 outubro 2010

Até amanhã


Hoje sentei-me mais uma vez. Mesma cadeira. Mesmo pedido.
Um cházinho de laranja: mata saudades dos trópicos.
A sala é quentinha, de brancos e castanho madeira.. e o vapor a sair das canecas quentes fa-la parecer mais acolhedora.
E chega um homenzinho, à mesma hora de sempre. Pequenino, discreto, com os seus óculos muito avant garde, um Boss cintado que eu invejo, e senta-se de frente à claridade da janela. Mesma cadeira. Mesmo pedido.
Voilá um galão-vapor à sua frente. Tem um ar doce
o livro que ele sempre saca da sua pasta, um calhamaço de páginas como estrelas tem o céu e é um romance que ele lê, todas as manhãs.
Dá para ver pela expressão que faz quando se afunda na sinestesia de vogais.
Todos os dias me preocupo com ele ao chegar, tão elegante mas tão sozinho.
Até ele sorrir entre a sua leitura e me garantir que é essa companhia que ele pede todas as manhãs antes de tomar o pequeno almoço ali, com ou sem a minha companhia indirecta.
Não sei se ele me vê ou se nota em mim todas as manhãs ao entrar.
Nem sem se o considero um homem realizado pela indumentária, ou pelos sonhos que lhe engrandecem a alma; que ele próprio escolhe ter.

08 outubro 2010

Toy Boy


Explorávamos a neve no pico dos montes em caldas de nata;
Gritávamos a adrenalina e os montes devolviam-nos a voz de volta.
Eco. Estávamos sozinhos?
Éramos nós e a satisfação. Aquele frio seco acompanhava-nos o passo.
E girávamos com o mundo porque o mundo era uma avalanche.
E viviamos tudo. Porque tudo era moda.

D&G

07 outubro 2010