31 outubro 2011

Timeless


Ontem foi duradouro. O culto à ignorância foi desprezado e a celebração da comunhão entre o instinto e o prazer visitou o apogeu. E a chacina já nos dá o prazer dos tempos antigos, quando folhas de papel rasgadas cheiravam a cenoura ralada e os chás continham ainda flores inteiras de celebridades secretamente mortas pelo estado americano, cujos olhos descansam sobre horário rotativo. Granadas de danças aceleram a estrada que a é realização e o conhecimento brada aos demónios brancos que invejam a farta comida na mesa da aniversariante. Judas ainda se sente só e oprimido, escondido na despensa onde só um Guarda lhe leva o almoço e goza ao dar-lhe um beijo na testa todos os dias. Vê a chave da porta que outrora torta, lhe lembrava as histórias do mais velho a crianças que só queriam brincar. Não se digam os falsos servos eternos, que nunca conheceram o lounge que é o Real vivido por extenso. Brindemos ao culto do agora.

28 outubro 2011

White Wool


A nossa manta de ovelha pura, o teu vinho tinto que nos flameja e um Frank Sinatra para nós aquecem o suficiente para podermos andar nús pela casa com a lareira acesa. Sou feliz só com isso. Nem que seja só por esta noite, e matava logo a minha alma. Para viver a última lembrança no para sempre.

27 outubro 2011

Loading




Um Pacman dançante onde a água levanta ao passar dos pneus, iludindo os mais vulneráveis de que é um rasto da liberdade. Troca-se o passo, molha-se o bico e TRÁS!, um já foi. Zaragata, zaragata. Canta-se um hino nacional de nossa autoria de mão à boca bocejadora que pede socorro à cama. As flores dos jarros já não transpiram porque querem desmaiar, a luz do candeeiro da cozinha desmaia devido à falta da vitamina Euro e os ratos comem o nosso mal agradecimento.
   Sai-se à rua e somos ciganos ou mal amados, drogados pelas contas e anestesiados pelo  cheiro a morto da sociedade. Unidos pelos genes, separados por betão e mentalidades. Mini Pacmans aprendem a comer e a serem super heróis na escola e as professoras assistem à degradação de serem comidas ao longo do jogo. O estômago gosta de ter a casa cheia e depois areja-se um bocadinho.
    Inaugura-se a depilação às amoras, aberta a concorrência à pele dos pêssegos e deslocada a costela de Adão. As camisas do Pacman deslizam em corpos femininos, embebedados da fragrância horrível a período. Chupa-se então o sangue às sangue-sugas e desmontam-se as tarântulas-esqueleto, já mastigadas porque o raio do Pacman as comeu.

24 outubro 2011

You made it



Amanhã marcamos outro encontro na rotunda onde te encontrei, de parca azul a gozar com a ganga das calças pretas enfeitadas pelas botas castanhas. Sentamo-nos num café que condiga com os teus caracóis loiros e pedimos um frappuccino tão vigilante como os teus olhos. Depois conversamos sobre a lenha que tem que se levar lá a minha casa, se gostas de exercício ou se passas a vida a ler como eu, ou se ainda estás à espera que a vida venha ter contigo. 
Estou a fazer contas para perceber como inauguraste a chuva tão simplesmente quando a compustura te beijava a face. E não te vi sorrir hoje. Pelo menos o riso típico, onde os lábios se espreguiçam. Ris mais com os olhos; e ainda estou a decidir se gosto mais assim. Amanhã pinto o cérebro,  ponho um nariz de palhaço no coração e peço ajuda ao sarcasmo e à ironia, à espera que te espreguices.  
Tenho a certeza de que vens: hoje seguravas tranquilamente o chapéu-de-chuva como se te protegesse de tudo.

21 outubro 2011

Eternal Seconds


As gargalhadas do Tio Alfredo começavam sempre com um copinho ou dois de ginja e licores caseiros. Mas éramos sempre nós que riamos, as gargalhadas eram dele porque mais ninguém nos fazia rir assim. Éramos uns trinta irmãos, mais uns sete primos e dois ou três bastardos. Mas ríamos todos. Rodrigo fazia de tudo para poder rir mais, então quando os maxilares já lhe doíam num pedido de socorro de tanto rirem, ele bebia mais um pouco para anestesiar a vida naquelas bochechas rosadas de menino académico. Ele e todos nós, porque éramos irmãos. Nascemos com a mesma mão na barriga e com a testa a fazer rugas, com a falta de ar e as lágrimas caídas porque as gargalhadas sozinhas já não chegavam.
Só quando éramos anestesiados é que chegávamos à fase seguinte: o Tio Alfredo via lutas de rebuçados do Doutor Bayard a saltarem pelas janelas fora, nós andávamos à chapada a ver quem dava mais, as penas das almofadas é que se riam agora - finalmente livres outra vez, a voar pelo quarto - e as bebidas fugiam das garrafas, suicidando-se no estômago dos humoristas da estaminé.
E os problemas avizinhavam-se lá fora, nas casas à frente do Tio Alfredo, rumorando que morríamos lá dentro da casa dele. E morríamos. Contentes, por sinal.

18 outubro 2011

Contabilista do mundo


Não me escrevas sobre amor. É muito pesado, muito luto, muito drama. Eu estou vivo, grande porra. Deixa-me as cartas cor de rosa para quando estiver encaixado - que já não vejo nem sinto. Vives a vida onde só dois importam, transformas um mamífero no teu mundo e é assim? Não, não gosto dos romances de Shakespeare. Fala-me do ar fresco que te atravessa as tripas ao passares aquela estrada de Oeiras rodeada de eucaliptos, da música que te faz escrever e dos cabelos que balanças nas discotecas. Do teu cão que te ultrapassa sempre que corres com ele, uma fuga transformada em corrida. Das tuas ideias para reciclar, o que desenhaste ontem à noite e do poema que vais emoldurar na parede do teu quarto. Do vermelho que queres pôr no teu cabelo e dos teus sonhos matinais, que são os melhores. Alucina.
Eu não te escrevo sobre amor. Nunca. Aqui, não.  De paixão passageira, no máximo. Sexo canibal, drogas espíritas. O submundo da alegria e das colheres presas no tecto do armário. Às vezes nem escrevo, só falo. E tu ouves e vens aqui escrever por mim. Posso falar-te de loucuras também, se não te importares. Da realização do Cosmos, ou interpretar-te os filósofos da tua cabeça. Cantar-te músicas que dêem para dançar sem técnica e sorrir-te para me retratares. 
Se souberes organizar só um bocadinho a tua língua, juntas o "te" à palavra que os anjos tanto gostam e afastas a primeira letra do resto... Mas não o digas alto, como não mo escreves. Que as palavras valem ouro, e essa vale-te logo metade do fim da vida.

14 outubro 2011

Amen


Esfrega-te nesse sofrimento estúpido, abraça-te e roça-te a ele até ficar ruço. Dorme com ele nas noites mais quentes de Verão, guarda-lo bem guardadinho e aprende a respirá-lo. Torna-te nómada dos meses e dos anos com ele, chama-lhe de irmão e promete-lhe um para sempre até durar. Vai-te fazer um bem que nem imaginas. Tens de saber sofrer, saber gritar e apreciares o choro que vem dentro de ti. Ter vontade de sofrer quando a coisa der para o torto. Grita, arranha-te mais e tenta explodir contigo. Mas com gosto!, tem de ser com gosto. Vais entranhá-lo tão bem que quando passares à frente de um espelho depois do banho, vais ver que és feliz porque é tudo um ciclo e que não foi a coitada da dor que te causou sofrimento. Foi a maneira como lhe olhas nos olhos e mesmo assim não lhe lês o propósito.

13 outubro 2011

Bravo Zulu!


Estás gasto, a alma já te é velha e o corpo já te produz bolor em cantos teus que desconheces; mas eu ainda consigo lembrar-me dos tempos em que o nosso chão lentamente balançava, dia e noite, enquanto as meninas arregaçavam o saiote e dançavam com as ceroulas à mostra, em cima da antiga porta lisa e grande do palácio que, ali, servia de mesa de jantar. O nosso sapateado não era ensinado, era criado e gozado com os jarros de barro salpicados do vinho tinto que lá dentro sambava, depois de esmagados pelos nossos pés.
Apreciava-se aquilo tudo, comendo os peixes com a espada ou com os ganchos de quem a mão faltava e esfregando o piço ao escroto enquanto as virgens e os virgens passeavam pela proa com velas pedindo histórias de embalar às mães que morriam de sede vindimal. Nunca cantámos  maldade, apesar da pobreza se deitar connosco em nossas camas todas as noites, porque o vinho bebia-se e o chão embalava-nos - de tanto vinho a ele entornado - para um mundo onde "Terra a vista!" era desconhecido. Morávamos noutro mundo, era nosso. E que Dionísio chamasse Poseidon para nos ajudar também! Saltava-se à mesa, pisavam-se os pratos, arregaçavam-se saias das meninas que em cima da mesa quase batiam com o cabelo finalmente solto nas lâmpadas a petróleo, entrava-se em umas quantas ali no canto do rancho, batia-se o pé e bebia-se mais vinho roubado da reserva para o comandante, que diziam as aias da princesa de Queluz que dava mais tesão.
E só não chamámos os tubarões que nos rondavam o barco porque quando o diafragma pulava também, o cantar alto já fazia os bichanos abanarem as ancas. Os coitados acabavam por zelar por nós, ai! das mulheres-polvo gigantes e os Tritões que procuravam as primogénitas desaparecidas que quisessem beber também - mal sabiam eles que o peixe e a carne das filhas eram comidos na cama dos comandantes!

10 outubro 2011

São as que dizem que por acaso não sonham

Não gosto de dividir sonhos, de sonhar no colectivo, de partilhar o ideal. Orgias em fábulas, nem pensar. Mais confessionário de igreja, onde o padre não está do outro lado porque bebe o vinho que as velhas pagam para a restauração dos santos e da basílica. É navegador de botes acompanhado pela rede de pesca e segredado pelo vento, dirigido pelas ondas e acenado pelas tartarugas da idade velha.
Não gosto quando me perguntas de manhã, na tua cama de solteiro, o que vamos fazer ou o que vamos viver nesta vida toda. Tenho de o sonhar sozinho para poder ser real: e se tu, a meio do sonho, acordas? Reajusto tudo sozinho? Altero os alelos das minhas entranhas? Arrasto-as até não poder mais? Não pode, ai não, não pode. Não me perguntes que não te conto. Tem de ser o que eu sonho, e tu podes estragar tudo se não tiveres bom sono.

 Sei lá, podes ser do tipo de pessoas que não se lembra o que sonha durante a noite.

07 outubro 2011

Meninas da noite

Nas festas da garupa vai-se sempre aos grupos. De garrafas escondidas na mala das meninas de saltos altos comprados ontem. As camisas por cima das t-shirts mostram que os putos não são assim tão irresponsáveis, mas os chás nas mãos engelhadas da água da praia compensam o vento nocturno da varanda onde a música toca também para os vizinhos. Sofás tornados em camas chiam, queixume do peso, o candeeiro balança no tecto, tonto do fumo dos cigarros e a coitada da sanita engole o vómito dos outros.
Tapada pelos nómadas e mercantes que desfilam pela casa, a estante lá ao fundo da sala sorri-me com a fartura de livros antigos e de cores mortas. E o chá na minha mão pede-lhe reconciliação, preso na mesa da cozinha, onde me sento com a perna cruzada. Despeço-me da camisa e avanço até à estante, que ocupa toda a parede: e fiquei-me por ali durante toda a vida, com a minha menina daquela noite.

03 outubro 2011

Só hoje aprendi que as asas estão na mente

Tens de me dizer, modelo de revistas, onde escreves as tuas bíblias e quem t'o diz ao ouvido. O desleixo escondido em ti opõe-se aos pormenores  que me mostras da minha vida que nem eu consigo ver. Tens de me dizer, como me profetizas tão bem o que eu descubro eras depois. Desde sempre que a minha avó me disse que os anjos existem cá na Terra, e que o céu é grande porque lá não há nenhum. E eu pergunto-me como é que ela tinha tanta certeza de estar certa ao dizer aquilo, se nunca te conhecera.