30 maio 2012

Pele Salgada



Ele não sabia fazer muito mais que soprar o mar. De noite, fugia às algas que de dia punha na pele só para se deitar sobre a namorada para irritá-la um pouco. Ele andava devagar. O mar ensinou-lhe a ter calma. Não era ele que era preguiçoso, era o mar que o obrigava a esperar.
Ele soprou o mar e o mar riu. Deu meia volta dançante e tentou fintar o pobre surfista nos tempos livres. Ele escapou, contente por deslizar por cima do mar. Contente por também ser capaz de fazer milagres. Talvez Jesus apenas tivesse surfado e ninguém tivesse topado, na altura.
O mar ensinou-lhe a dançar. Acompanhava-lhe os passos e os deslizes, comendo-lhe por vezes quando ele dava um passo errado e pisava os pés de Poseidon. Mas nunca o rapaz ouvira o mar gritar. Limitava-se a sentir-se flutuar na cama, à noite, quando o mar não lhe indicava como dançar em sussurros disfarçados pelo bater das ondas.

29 maio 2012

Thumbs

Eu nunca tinha reparado nessas marcas brancas. Têm um ar limpo e fresco, eu já tinha percebido isso no meu irmão e só pensava em ter uma marca dessas. Quando desenhava e eu via  aquela mão por cima do papel, quando estalava os dedos ou me apertava a mão em cumprimento. Ele sempre teve umas mãos bonitas. E muitas marcas assim.
Ele tem umas marcas branquinhas nas unhas dos dedos que aparecem de vez em quando, que eu acho perfeitas. Nossas mãos nunca irão ser iguais. Mas eu sempre quis - e vou querer - umas mãos assim quando fosse grande como ele. Desenhadas, simétricas e com marcas brancas nas unhas que aparecem e desaparecem como nuvens.
 Hoje eu sou mais alto que ele. Ele está baixo e com as temporárias marquinhas nas unhas que habitam o  seu punho forte. Eu, continuo a vê-las passar.

26 maio 2012

Envelopes


Eu não vou dizer para você que não sou um pouco egoísta. Eu sou sim.
Mas eu vou tentar arrancar isso de mim. Nem que eu fume umas dessas balelas que você vive fumando com os seus amigos da praia bonita de Arrábida. Eu vou ter de entender que você é leão de cativeiro, e que já foi de outros tantos. Tal como eu fui. Nós somos de todos. É isso que eu quero atingir com o meu progresso à poligamia. 
 Eu não vou dividir você com ninguém. Mas eu vou ter de aceitar que sua virgindade não foi entregue a mim. Vou ter que entender que minha orelha não foi a única que você trincou. Que você cresceu com os outros, como eu cresci com os outros também. Eu prometo que um dia vou saber que foi isso que nos fez encaixar um no outro assim. Que a gente teve de ser dos outros para sermos um do outro agora. Talvez eu nem gostasse de você se você não tivesse sido de ninguém ainda. Porque os leões também se entregam, eu acho, eu espero.
 Eu sinto aperto na garganta falando disso agora, mas eu sei que vou conseguir, nem que seja quando velho, deixar de querer afastar você de mim porque você não é minha exclusiva propriedade. 

Reza para eu chegar lá?

24 maio 2012

Aiaaaaai

Nós brincamos na areia com canetas de cheiro a melão e amora, e nós só vamos à escola por causa das canetas. "Dizem que o corretor líquido dá uma moca do caralho se ficares muito tempo a cheirar", diz o puto gordo que, como já aconteceu a todos, rebentou a esferográfica Bic na boca e ficou com a língua toda azul. As nossas balizas são feitas à noite e são de pedregulhos da calçada portuguesa originalmente pombalina, em cima de alcatrão já riscado de giz para podermos saltar em qualquer jogo que dê para saltar. O nosso mundo é o nosso bairro, o resto são planetas que nem os cotas da NASA conseguiram inventar. As miúdas bonitas continuam a achar que a beleza lhes dá direito de serem arrogantes e os putos escarram ainda melhor que os velhos. Acho que têm mais pinta. Os cereais estão prontos e os desenhos ainda dão na televisão que não foi apagada ontem à noite. Eu vou continuar a ver o Cartoon Network apesar de não perceber puto do que eles dizem em inglês. Porque tu podes continuar aí no teu mundinho real, no mundo onde paras de sonhar quando acordas. Eu vou continuar a sonhar depois de acordar. Ah!, quando eu morrer vou poder sonhar ainda mais. 
Eu peço que acordes do real. Se o real fosse bom, não tinha o Homem inventado a Arte.

21 maio 2012

Quanto levas?

Um jantar. Nunca me julgues por me prostituir aí pelas casas dos outros, porque eu nem sempre cobro barato. Quando tu, escolhes minuciosamente as oportunidades, gastas dinheiro com as roupas e noites a ensaiar posturas e entoações no quarto, esperas aparecer O cliente, fazes-te difícil, brincas um pouco com a situação porque sabes qual vai ser o fim e até porque se demorares mais consigas mais uns trocos... E vem finalmente O jantar. O primeiro, ele com perfumes, tu com outros três no pescoço. Isto para esconderem o que todos nós cheiramos nas nossas entranhas: a podre.
Então vocês os dois - ou três, é à escolha - jantam, sorriem, falam, mostram que sabem dar gargalhadas estranhas e questionam-se. Vão beber café. Porque, porra, o jantar passou tão rápido.
E fodem. Dás a melhor foda com o teu cliente. Vendeste-te por um jantar.

E ainda tiveste o prejuízo do custo das roupas, da maquilhagem que ninguém pode saber, das noites pouco dormidas porque treinavas ao espelho. Podes também cobrar a atenção. Porque, afinal, tu és social. Tens um facebook, um blog, um twitter e ainda um instagram. Vá lá, e os copos ali em cascais ajudam a teres Nome e Postura. Porque basta só ter a postura. Então se conseguires fingi-la sem a teres, tens o jogo ganho. Mas falta-te o tal capricho teu, a atenção de alguém que tu categorizes especial. Alguém que tu, sub-conscientemente, tornes um deus. E esse cliente só precisa de dizer-te que sabe que tu existes. De dizer Bom dia logo de manhã, como diz a tantas outras pessoas no trabalho. Que diz que só pensa em ti e que vai ser para sempre, porque o coitado ainda não percebeu que vai morrer depois de uns anos de começar a ficar empelado e quinado dos miolos.

Podes até cobrar-lhe um casamento. Uma vida perfeita, um marido digno e estabilidade familiar e financeira. Pode dar-te o mundo. É bom quando nos dão o mundo. Ou que seja astronauta...

Começa a cobrar-lhes a alma. Vai-te saber mais justo. E não tenhas medo, que eles constroem o que tu roubaste em questão de meses ou anos, para os fraquinhos. Dás-lhes um chá, sei lá... Aquilo passa. Nunca vi ninguém a morrer de amor, a não ser os que já estavam mortos antes de amar. Tira-lhes a eles próprios.  A pouca alma que lhes resta. Aqueles trocos de energia que eles foram juntando, pouco a pouco, para serem quem um dia queriam ser. Tu é que escolhes: cobras-lhes uma vida inteira de casamento ou só o sexo.

Mas tu - sim, tu - devias ter vergonha ao dizeres que não és uma grande puta.


16 maio 2012

Cerebelo


Eu vou autografar-te o cérebro. Desculpa, perdoa-me, mas é assim que se joga cá em casa. Cá no quarto. Cá na cama. Vou ter de matar-te, já que o sentimento de posse é tanta e, claro, vou abrir-te o cérebro para que possa escrever lá o meu nome junto de alguma piada. 
 Peço-te que não deites muito sangue, eu não gosto desse cheiro a ferrugem e as minhas mãos vão ficar borradas se isso acontecer. Eu só quero autografar-te o cérebro. Descansa que depois fecho-te com fita-cola o crânio, e coso-te o couro cabeludo todo de novo.
 Para ninguém perceber que, por dentro, és meu.

07 maio 2012

Lição I


Tu foste o Diabo de todos os sonhos meus. Foram inúmeros os holocaustos que senti, deitado sobre pedras lisas de mármore que um dia fora verde. Tentei ainda aprender a fazer vudu contra o demónio que me sacrificava o sangue, para contornar a profecia.
 Mas tu só querias ser feliz. Tu só seguias o caminho que tem de se seguir. Fugiste de vários campos de trigo para te deitares comigo no quarto. Eu sei. Eu sei, eu hoje sinto que já sei tudo quanto a isto. Tu tornaste-me a vida negra e o coração solitário, pegaste em mim entre o indicador e o polegar, levantaste o braço bem alto e largaste-me para eu sentir o impacto que toda a merda de pombo sente ao bater no chão.
 Tu fizeste com que aprendesse a ver à noite e fizeste-me gostar da minha própria companhia. E eu percebi que não se deve voar com os pombos. Tu só me ensinaste a ser mais homem. E a perceber que tudo o que querias, é que eu um dia fosse forte como tu. Parece-me que chegou agora a minha vez de esconder-me debaixo das camas das criancinhas sonhadoras. De crucificar quem se aventurou a ser Jesus. De herdar o destino de quem só quis que eu um dia fosse forte como tu.

04 maio 2012

Fotossíntese


Gosto da tua arrogância. Do teu punho arregaçado aos sorrisos só por simpatia, do jeito com que olhas para o céu como se fosse um mar de gente. De como pisas a areia fina e quente da praia e não te impressionas, porque sabes que aquilo é só mais um direito teu. A ter tudo.
Tu tens direito a tudo: tens até orgulho em dizer, de alma rasgada, que tens o direito a ter aquilo que não existe. Sonhas alto com o outro lado do universo, que é finito. Tu queres o que ainda não se sabe.
É por isso que ouves as músicas pimbas e bregas de Rui Veloso, Xico Buarque e Benny Goodman porque já ninguém liga ao vulgar e é do vulgar ignorado que tu gostas. De umas calças jeans claras e bem gastas, a t-shirt branca e os chinelos roubados do irmão. Ou calções pretos e gotas de água a servir de casaco contra o calor do Sol.