30 agosto 2012

Menina dos Fósforos



Diz à menina das pupilas brancas que afinal o destino é redondo. Conta-lhe que a esquina do nosso prédio cheira a kiwi e confessa-lhe que o Universo é uma esfera invertida e virada do avesso que nós nunca iremos compreender porque não temos tal forma que o represente. Chora-lhe algumas histórias russas para que ela ganhe ossos fortes e brinda-lhe o estômago com a hortelã que plantaste comigo na varanda do meu quarto.
E pede-lhe o troco, que seja a lucidez num sorriso.

29 agosto 2012

Cartas de amor

Estavas bela, hoje. Não que sejas uma mulher bonita, mas via-se a qualquer intensidade da luz do dia que tinhas pensado meticulosamente no que irias vestir, hoje de manhã, antes de saíres de casa. Subiste, a pé, a cidade inteira só para me ver. A mim ou à minha fotografia. Foste lenta, demorada, num sofrimento propositado por todos os dias que não tiveste esse ramo de flores na mão.
  Nunca me ofereceste um ramo de flores. Talvez nem tenhas sequer pensado, inocentemente, que eu gostasse de flores. Eu admirava-as, sabia as que eram a tua cara e as da mãe. Sabia qual era o cheiro que correspondia a qualquer uma de vocês e adivinhava sempre as que vocês não iriam gostar. Mas colhia-las, sempre que ia ao campo ver os cavalos, que tinham nomes dados por mim, e brincar sem ter que ver o mundo edificado. Eu gostava de flores para dar-tas. Eu gostava delas porque sabia que irias gostar de recebê-las quando eu chegasse a casa, das minhas brincadeiras de miúdo, e irias guardá-las num copo velho com água. Às vezes, num vazo pequeno. Suponho que isso acontecia quando as apanhava em grandes quantidades ou as tuas preferidas, que eu nunca cheguei a perguntar-te.
  Hoje vieste tu dar-me flores. À minha nova casa, como de tantos outros. Trouxeste as tuas preferidas, as que eu arrancava mais vezes da terra para te entregar. Nunca me trouxeste flores enquanto estive vivo. Nunca me disseste que me amavas. E não preciso que mo digas como o fazes hoje, preciso apenas que o mostres, como sempre fizeste quando era pequeno. Quando era alguém. Mas eu prometo que esta nova casa vai estar cheia de flores nas janelas e nos canteiros, quando vieres aqui comigo morar.

27 agosto 2012

Bela



Como diz o meu amigo Peixoto, é impressionante como conseguimos ter tão diferentes fisionomias apenas com tão poucos elementos básicos como os olhos, nariz, boca, orelhas e cabelo. Afinal, somos arte porque a arte é uma descoberta milenar que se encontra no zero, número infinito e absoluto para os deuses.
Confesso que talvez já tenha estado com os melhores. Talvez já tenha estado com deuses e nem ter dado por isso. Só agora caio em mim, percebendo que já me levaram ao céu e eu nem dei por isso. Percebes? Eu senti-me no céu, com deuses. Eu só não sabia da possibilidade de estar mesmo com deuses no céu. Quem sabe, seja essa a razão pela qual eu esteja de volta. Talvez tenha mesmo estado com os deuses numa cama gigante e que tenha começado com Baco, daí eu não me lembrar de nada. 
  Mas é-me difícil dizer-te que há estética na face de alguém. Na verdade, não há estética na cara da maioria das centenas pessoas que vejo, todos os dias, na baixa da capital. Quem sabe eu tenha de ir a uma galeria de arte, cultivar-me mais, a um atelier de qualquer-coisa-bonita para entender, sagradamente, os conceitos de simetria, estética e anatomia. Pedras no chão, que o belo ainda hoje se discute nos livros de filosofia e dos entendidos.  
 Porque as fotografias já não chegam. As festas só duram horas e as roupas estragam-se com os anos. A beleza e a personalidade não costumam andar de mãos dadas e descobre-se aos 30 que os cremes não eram tão bons . Se eu tentasse descobrir o que é a beleza, eu diria que se encontra numa cama às oito da manhã, com olheiras que nos cumprimentam acompanhadas de um hálito oito horas de jejum. É cada vez menos possível ser belo. Se eu tentasse descobrir o que é a beleza, eu prometeria que é ser-se simétrico e saber-se disso sem qualquer orgulho.É agir tão bonito como a cara se faz ver.

22 agosto 2012

I'll be seeing you

Imagina uma sala Billie Holiday. Uma vida dentro dessa sala. Não dentro físicamente, mas que a vida dessa sala fosse Billie Holiday. Tocada num rádio imparável, velho mas sem pó, que sustentava a vida imensa da sala fracamente iluminada pelo Sol já quase posto, marcado em forma de quadrado no chão pela janela de cortinas recolhidas.
Foi aí que eu e tu nos casámos. Foi aí que descobrimos o tom quente do cadeirão iluminado pelo Sol, velho, com cheiro a charuto que repousa ainda quase completo, no cinzeiro. O fumo que dança presta homenagem ao que ainda não vivemos e tudo o resto é escuro na sala. Reconforta o negro, ao som da voz daquela preta mágica e profeta que nos casou. O negro tem o Tom e o Jerry que correm pela casa, para nos lembrarem que já fomos crianças mas que ainda não somos velhos. O negro da sala não deixa ver o papel de parede velho e fora de moda que assinou os papéis do nosso casamento.
E essa vida senta-se no cadeirão de chapéu, porque tem de condizer com o charuto, e tudo o que faz é olhar para o Sol já quase posto. Durante vidas, criadas por Billie. Felicitadas pelo negro do quarto que abraça calorosamente meu corpo, os sonhos. Os sorrisos lá passados, os aniversários e as noites de paixão. Noutras vidas. Hoje é dia de Verão e ouve-se o espírito da preta na sala escura cujo Sol se despede. E enquanto houver Sol, a vida desta sala será sempre Billie Holiday.

07 agosto 2012

Ilvastor

Era bom poder ver o seu filho de novo: um homem calmo e pensativo, deitado de barriga para baixo na cama de casal barroca com a toalha a tapar as partes baixas do corpo acabado de vir do banho. Tinha cortado o cabelo, estava diferente. Estava até mais tonificado, uns ombros largos acompanhados de um pulso forte e veias dilatadas. Já não era há milhares de anos o que todos pintavam e adoravam nas igrejas e nos conventos. Ele observava, pensativo, as dezenas velas que sua mãe, desta vez Helena, colocara no seu quarto para recebê-lo. Pedira-lhe, assim que chegou, para tirar do quarto a televisão e o tablet: não queria saber dos fãs, que já sabiam que ele tinha regressado. 
  Asmodeu pegou na pouca alma que faltava a Ilvastor e entrou no quarto onde Salvador agora se deitava, chegado de montes que ninguém parecia conhecer. Sentou-se num cadeirão almofadado e gasto de velho e, a roer as unhas ponteagudas do corpo do demónio que dominara, observou o seu filho. Desta vez iria ser diferente: desta vez Salvador sabia de onde e para o que tinha vindo e aguardava a ordem do seu outro Pai para o revelar ao Mundo. Era ironia o grande rei do escuro sentir-se tão perto e estar tão distante do seu filho. Salvador não via Asmodeu desde que voltara a nascer, nem poderia vê-lo enquanto vivesse em carne: o seu outro Pai sempre teve mau feitio e decidiu assim fazê-lo. Mas Asmodeu aguardava que seu filho revelasse ao mundo o que era a verdadeira Santa Trindade, para poder voltar de uma vez por todas para perto dos seus pais.
  Controlava a vontade imensa de voltar a deitar-se sobre o seu filho e consumi-lo como dantes. Entrar dentro dele e sentir-lhe a saliva quente da sua boca. Ver o outro Pai a dominar-lhe a cabeça em movimentos repetitivos. Ter os braços daquele homem jovem a arranharem-lhe as costas ao entregar-se aos seus pais. Voltar a ter a sua cama partilhada entre os três. Mas por agora, o Salvador terá de aprazer-se com o seu amigo de infância, o filho de Simão de Queriote. Porque encontra-se distante dos seus pais. Porque a distância nem Deus supera.  As orgias terão de esperar.





03 agosto 2012

Walt


Não via televisão. Passava noites deitado na cama sem ver televisão. Pegava no computador e surfava a rede do mundo com o canal Hollywood na tv a encantar tudo o que estava dentro do quarto. As músicas, os choros fluminantes, os gritos do epiranga, as guerras ensaiadas. Toda a encenação falsa cinematográfica tornava aquele quarto real. Quando chegava do bairro redondo, vinha para o quarto fazer tudo menos olhar para a televisão. Mas ela lá estava, ligada para que, por sorte concebida dos deuses, um dia os filmes entrassem pelo quarto a dentro.