13 dezembro 2010

Cartas ao Coração


Vieste sem querer, batendo à janela numa manhã branca e fria. Disseste-me que voltavas de uma viagem longa e sem destino, onde a liberdade (não) comandava e disseste-me também que tinhas cheirado a fragrância do mundo.
A tua cara dizia-me que precisavas de uma sopa reforçada e deixei-te entrar: vinhas com um casaco de pele já suja há anos e deste-me logo a única pistola que tinhas para não desconfiar de ti. A cara suja dizia tudo: andavas bastante e devias comer os bichos que por aí andam só para sobreviver e continuar a tua viagem da vida.
A casa era de madeira - eu sei que não te lembras, mas eu digo-te. Quero que te lembres do que não te deste ao trabalho de observar por culpa da fome. A lareira aquecia-te as mãos de dedos em pontas redondas e unhas sujas à medida que pegavas na colher, pensando que esta poderia ser a última vez.
Eu peço-te imensa desculpa, fui indelicado ao ficar a observar-te do outro lado da mesa de um metro e meio, bem em frente de ti, sem tocar no meu chá já arrefecido. Mas não podes ter razões de queixa, eu também não gostei do facto de não teres reparado no rústico da casa.
Mas observaste a cama, isso eu sei.
E, apesar de ser minha, as saudades que tinhas de uma coisa daquelas fez-te meio que alucinar e pareceu-me que ela quase te saudava, acenando-te com os lençóis e sorrindo com a almofada de flanela cinzenta.
Se foi por isso que fizémos amor nessa noite? Não sei.
Mas foste embora na manhã seguinte e à noite, eu sabia que não voltavas.

1 comentário:

  1. Opah, que lindo.
    Este e o texto anterior. Tens muito jeito Ruben! :D

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