29 novembro 2011

Inn Oh! Sense


A composição de uma simples tela pode ser muito bem uma pergunta evolutiva, irmão. O problema é que para te ser evolutiva, tens de estar ainda num grau demasiado estreito e baixo para poderes ser visto pelos outros. Mas é tudo pulos de árvore em árvore, até chegares à mais alta, onde os raios tocam. Se fosse a ti ficava-me até por aí, simples e limpo de tudo.
Porque julgas que é uma chatice filosofar sobre coisas abstractas ou, como tu pensas que eu não sei que o dizes, conceitos inventados por nós que na verdade não existem pelo facto de sermos matéria vivendo em matéria e, portanto, o que não é matéria não é. Mas é só uma tentativa dos que já não brincam às espadas e querem ser guerreiros, quererem saber da antimatéria também. Percebes?
Ser como Deus. Ter o que existe e o que não existe. Sim, ninguém disse que não é complicado. Mas é uma questão de complicar para simplificar. Automático.
É ter o tudo e o nada. É ser impossível.

Fly


Pinta-me o quarto de azul, e chama as sereias para virem nadar comigo. Pinta-o de cinzento e traz giz para brincarmos à forca. Pinta de vermelho e vamos fazer as molduras douradas terem os nossos retratos tão da corte. Pinta-me de branco e lê-me um livro que tenha o mesmo aroma que o pequeno-almoço que vais ter de trazer para a cama ao meio dia em ponto. Pinta-o de preto e grafita um retrato do Leonardo DV só com spray branco. Ou um stencil, se quiseres. Pinta-o de castanho e obriga as folhas vermelhas do outono caírem pelas paredes. Pinta-o de verde e evoca Monet para tomar um piquenique connosco ou comigo. Pinta-o de amarelo, se o Sol vier para cá morar. Pinta-o dourado se não fizer confusão ao prateado da Lua e passa-lhe uma de mão de transparência se vivermos no céu e eu ainda não souber. Vai de preto se tivermos sono e retrata o paraíso se for para dançarmos lá.

A caminho


Vamos andando pela estrada do Sol, encarando o horizonte como o chão da meta pré-destinada. Carimbamos o caminho com sorrisos cúmplices governados pela calma do tempo, iluminados pelo foco de luz quente que nos beija a cara. É algo que não me cansa, e fico sem medo que vocês não me acompanhem. Mas sempre aqui ao lado, prevendo no Sol o vosso reflexo.
Não vale adormecer, que ele embala. E se virares as costas ele abraça-te. Vamos a pé, porque a dormir no carro com o Sol tardio a bater-nos na cara já fomos a estrada inteira. De barca já remámos a Noé e ele não estava lá.
Vamos a pé, de ténis de Inverno, grossos, daqueles de fazer skate. E com umas hoodies frescas de Verão. Com o sorriso do ano inteiro e felizes por irmos em vão.
É assim o nosso caminho.

24 novembro 2011

Mentes-cabeça


Qual foi o fim que lhe deste?
Travaste guerras por montanhas intocáveis e quebraste todos os feitiços que ele te lançava para quê? Ele sabia que ias ganhar. Foi ele que o quis, antes de tu nasceres, que ganhasses e ficasses com a coroa e o pódio. Exibes-te ao teu povo servo de peito cheio, pensando que enfrentaste o imbatível. Que castigo é esse que lhe deste, feito de amêndoas doces e de martinis com gelo e limão perto de uma manta aquecida pela lareira? Que merda de guerreiro fez isso de ti?
Tão encantado pela espada imponente e brilhante pela primeira vez em tua mão, tão obcecado pela festa que viria depois de matares o vilão, que não te veio a Lua dizer que era esse o seu propósito. Foi composto pelo teu ódio, alimentado pelos escárnios e pelas escarretas tuas que lambia do chão. E de alma calma subiu ao seu paraíso Infernal pela espada do próprio inimigo, o seu grande desejo concretizado e dado de bandeja pelo cavaleiro tão honrado na merda da corte real onde os escravos se juntam com os reis e as rainhas na mesma cama, quando ninguém vê e outros fingem não ver.
Querias facilitar ainda mais?

22 novembro 2011

Aí eu abro.



Desculpa-me se ainda não li cartas de amor.
É de mim, nunca aprendi a mostrar-me interessado em vidas passadas. Nunca tomei o sacrifício como medida nem a dor como dogma absoluto. A decapitação sempre me veio como condenação, nunca por dedicação. Talvez tenham sido envelopes de cartas que nunca cheguei a abrir. Mas esperava pelo carteiro dizer-me de quem eram: e ele não disse.
Talvez diga um dia.

18 novembro 2011

Ti sei fatto la segga oggi?


Nunca na corte houve rainhas juntas na cama com as suas escravas, substitutas dos homens porcos que vinham com o sangue da caça na boca e com o peido na cueca pronto a sair. Nunca houve dois irmãos, filhos do mesmo rei, a quererem casar; nem chantagens das escravas aos reis adúlteros.
Nunca aos cavalos desobedientes, às humilhações do rei feitas pelo bobo na presença do próprio, a dosséis partidos porque ontem a coisa foi forte entre os sete - SETE! -, ao sexo e à boca nunca apresentados, às virilhas delas depiladas, aos corpetes apertados e às madames adormecidas na cadeira para preservar o penteado para amanhã, aos piolhos e percevejos por debaixo da peruca do rei e pelos pintores que faziam retratos-fábulas a modos de evitar a forca.
Nunca aos reis, tão bem enviados de Deus, secretamente pagãos e nunca aos príncipes que chamavam padres aos padres, sem saberem que os padres eram mesmo padres deles.
Nunca a corte foi real.

Se percebêssemos, o salão estaria vazio.


Se conseguíssemos perceber, naquele salão de festas e de músicas rodadas por trompetes e pianos, seriamos infelizes. Não dançaríamos tão bem a valsa que fomos obrigados a aprender, não apreciaríamos a merda que os músicos tocam para sermos o par para onde as atenções estão centradas.
 Deixemos apenas que eu te guie e tu me sigas os passos com a postura completamente perfeita e o pescoço esticado. Que o músico mais tímido da orquestra do salão da condessa nos faça sonhar e acreditar que somos príncipes e que ali pertencemos. Que não vejam a tua cintura secretamente descansada na minha, porque a meio já não dançamos para mostrar que somos reais competentes, mas porque a música tornou-se nossa e toda a realeza parou para nos ver dançar.
 Talvez um beijo calhe bem no fim, quando as palmas contagiarem a sala, as nossas vénias forem feitas e recolhermo-nos para a nossa mesa, como se a sala nunca tivesse sido completamente nossa. 

17 novembro 2011

Pulmo


Cheiras a sexo. É um cheiro intenso, mas não me incomoda.
 Não é que tenhas acabado de o fazer, esquece isso. Mas pelo cheiro, sabe-se que vais fazê-lo agora. E ainda estou para descobrir se vem dos teus olhos, dos teus braços enrolados a mim, se do bafo a galão. Se é perfume que pões ou é do que sentes quando estamos sós e o mundo é nosso. Cheiras a sexo quando afundo a minha cara no teu pescoço, quando partilhamos a casa de banho ou cozinhas para mim e como do teu garfo. E não há nada como não resistir ao cheiro e fundirmos-nos em cima das almofadas silenciosas;  o instinto provoca o mesmo ritmo, o desejo acorda a mesma respiração e somos um só.
E vou para a rua com esse cheiro suado e incómodo para os outros, contente por cheirar a ti.

13 novembro 2011

Diplomas

Olha aquele herói sentado no banco, podre de pombos esfomeados e iluminados porque quando voam vêem o mundo de longe. Tem as calças rotas, tão sujas que não dá para reparar que já foram ganga branca; e os cabelos não se foram enrolando uns nos outros por distracção. Decora as caras de quem, por bondade, lhe dá comida e até nem gasta todos os trocos para a droga. Dorme na rua chuvosa ali a baixo da rua do Carmo, quase ao pé do Pingo Doce, e despreza os mais ricos.
  Olhou para mim pela primeira vez com um menosprezo governado pela paciência, como um pai paciente que espera o filho aprender sobre a vida. Não gostei. Juro que não gostei. Nem eu nem os empresários, os políticos e os mentirosos – profissão, calejados de fábulas.
  Descolou-se dos rótulos e simplicou a sua própria vida. Aceitou a divindade que lhe foi dada e decidiu não fazer parte do ignorante sistema social. Dedicou-se profundamente ao sistema humano. E não soube o que lhe responder quando me perguntou se ele é que era o artista, o alucinado e o inconformado. Aquele herói que vive na casa do mundo cuja pele escura e suja fede, é a única alma iluminada abaixo da rua do Carmo.

11 novembro 2011

Those, forgotten



A casa abandonada é nossa, não porque fazemos questão de privar os demais de cá entrar, mas porque as pessoas não querem definitivamente cá entrar - fazem-nos um favor automático de tornarem-nos a casa exclusiva.
 Está escuro e nunca consigo ver o número e o tamanho das divisões e da mobília, só os gemidos e os suspiros que os Silenciosos escondem em orações. Há toda a possibilidade de acendermos um candeeiro esquecido, mas para quê terminar com a imensidão impressa que o negro é? Deitamo-nos na cama de flanela quente e imaginamos que não somos sequer matéria, porque se não tocarmos, não existe; e as histórias que a mente nos conta porque tudo é possível no vazio do conforto escuro. E levitamos porque não há chão e podemos ser outros porque não nos vemos. Sentimo-nos; num espaço ilimitado e milhões de vezes multiplicado pelo escuro. E os pirilampos que nós inventamos voam-nos sobre a mente e cabeças, e somos pretos com luzes laranjas no meio do nada que nos é tudo.
 Não acendas as luzes, não limites o infinito.

06 novembro 2011

The Brave



E passeia ele na estrada pirata de desertos, acompanhado pelo calor e pelas miragens de reconhecimento. Tem os pés descalços, é o único que irá cumprir a profecia para que o irmão lhe lave os pés. De vestes pretas e mente iluminada, a barba de nada lhe serve senão de conforto contrastado ao luto dos que partiram. Teve o azar de ser o único bravo e corajoso, teve o azar de ser eternizado.
   Levado pelos senhores de gravata que servem a sociedade, carrega às costas um povo adormecido de fábulas e uma inspiração contraditória aos olhos dos mais - e muitos - distraídos. Bebe água de coco, ainda não perdeu o hábito. E não espera por chegar ao destino da estrada deserta que lhe grelha os pés: toma um passo de bebé que me desconcerta, esperando que o povo perceba quem é ele e que algum padre, que devia ter-lhe respeito, lhe deixe falar sem gaguejar.
   Mas consegue sorrir-me pacientemente ao ver-me passar de carro na estrada quente no meio do deserto americano, porque milhares de anos ensinaram-no que o Hoje é uma mescla de realidades distorcidas, histórias com excessiva pontuação e escarretas no olho de alguns. E continua a andar porque já lhe está no sangue o espírito negro de sacrifício e a alma de artista que não precisa de ser reconhecida ou lembrada para focar-se na profecia.   

04 novembro 2011

Asmodeu


Não entregues a tua arte ao sujeito. Porque assim que a arte se mistura com a sociedade, torna-se lixo. E tu não queres ser tu em vão. A não recomendar o uso descartável, o exibicionismo do nada imprimido por máquinas industriais, a confissão a um santo que não ouve. Iniciados os artesãos, os projectos do "Eu" e a fé em si próprio para o esforço ser crescente e contínuo.
Que comece o Inferno.