29 janeiro 2012

1, 2... 3.


Felizes não, felizes nunca.
Porque nunca hei eu de fundir-me a alguém enquanto não passarmos fome numa semana de Verão, sem uma noite fria nos atacar numa madrugada em que não haja chaves de casa para entrar. Nunca havemos de ser felizes enquanto não passarmos dias a viver no escuro e a febre não nos apresentar um ao outro, enquanto o chão não nos servir de cama. Enquanto não chorar porque tu sentiste.
Não há de ser amor enquanto não passarmos pelo Inferno.

22 janeiro 2012

Acção



Nós não tínhamos televisão em casa. Não havia dinheiro para tal luxo. E a minha mãe não deixava, dizia que a televisão roubava-nos o dinheiro para o caldo de romãs que juntava no bife que o peru que tínhamos no quintal iria dar. 
 Então eu chegava da escola e todos os dias a encontrava na cozinha, de olhos cerrados quando não estavam fechados, a cantar uma música soul ou jazz. Uma diferente, todos os dias. Ou dançava um charleston enquanto cozinhava o lombo de porco com alecrim e passas. Fazia um drama ou outro para matar saudades dos seus tempos juvenis de teatro, quando lhe encontrava a chorar enquanto cortava as cebolas na mesa de madeira. E ainda quando não estou, o meu pai chega a casa sabendo que metade da roupa dela está já no chão. 
 A minha mãe matou os tempos mortos e silenciosos a ensinar-me a cantar as músicas do Ruy Mingas porque às vezes Paulo de Carvalho já fartava. Contou-me das histórias lá da banda, do rei do gado e da menina que tinha nascido no paraíso e tinha criados para lhe dar banho. Do "mundo ser nosso" e de nada ser de ninguém. Levou-me até África sem sairmos da cozinha e ensinou-me o cheiro de todos os legumes que os que vêem televisão não cheiram. Mostrou-me que ler com o cheiro do bacalhau com natas caseiro a sair do forno é melhor do que ao ouvir música e educou-me a pegar correctamente no copo de vinho, porque bebia sempre um enquanto cozinhava. 
 Sorria ao sonhar, enquanto cozinhava.

21 janeiro 2012

Get ready & Até amanhã

Hoje eu vou perder.
Vou perder tudo o que ganhei nas últimas eras de vida, algumas noites acompanhado por Pico de La Mirandola ou por Agostinho da Silva. Viciados em gargalhadas de vidas aliviadas que acendiam as velas dos castiçais presos à perede de papel que ali se desejava. Vou perder o orgulho e a arrogância, vai ser humilhante relembrar o holocausto no dia seguinte.
E os deuses vão rir de mim, condenar-me à pena depois de usarem o cheiro do meu suor para chegarem a Zeus.Mas vou contabilizado, bem ensaiado e galã de cinema. Vou de mãos dadas ao Exmo. Sr. Prazer e vamos tapar os olhos ao esforço e ignorância. Vai-se voltar ao nada.
Hoje vai ser negro.

12 janeiro 2012

Contraste


A minha profissão é tornar inocência em pecado. É ranger os dentes enquanto se sorri para a foto, calçar o teu olho embalado na sola do sapato. Convencer-te de que não vais ser feliz sem mim. E orientar e oferecer-te tudo, num acto de bondade e solidariedade disfarçantes do esquema precioso de manipulação e controlo. Fazer-te babar por algo que nunca vais ter. Fazer com que te mates por isso.
 A minha profissão é ser o pai que nunca te bateu porque nem isso vales: para descarregar a energia da fúria. Adorar-te como um deus e louvar o teu nome aos pobres, sabendo que são só os ricos que ouvem. Fazer com que sonhes comigo e te masturbes a pensar em mim no teu quarto de adolescente, e chorar em frente de ti ao dizer-te que não te mereço porque não sou nada. Oferecer-te um presente que seja ainda melhor do que aquilo que querias, feito por mim, que mandei o meu sobrinho fazer porque na verdade não tinha tempo. O meu tempo traduz-se em vontade e paciência.
 A minha missão é ser o mau da fita, abusar do teu sexo e depois cuspir-te na cara quando começares a pedir para casar comigo. Eu já casei com os deuses, todos juntos numa orgia de sete dias. Já não posso ser teu marido, pai, amigo. Posso até ser o teu prostituto, encostar o teu rabo ao lavatório molhado e consumir-te ali, mesmo ao lado da carne a grelhar no fogão. A minha missão é ser um deus teu, que à tua frente nunca pediu para o ser.

11 janeiro 2012

Coma


Vem com o coração fechado, vem de mente  mais aberta.
Vem com TAC's ao cérebro e com capacetes futuristas a estudarem-te os lobos.
Vem reflexionado e ponderado, cheio de Freud's e Agostinhos da Silva,
Que agir de acordo com o coração é tão trágico como estar ligado a uma máquina que apenas sustenta os seus batimentos. Um stand-by sem zapping, comedido por satisfação de baixo tamanho.
Vem feliz.

06 janeiro 2012

Take 1


O vento tornou-se ar condicionado barato e avariado, a areia fez comichão aos pés e tudo o que era comida encontrada ali sabia a ontem. As árvores já estavam decoradas e esperávamos por prédios que já não víamos há décadas. Os pássaros já nem sabiam cantar. Cantavam sempre a mesma música, no mesmo céu, com as mesmas asas e à mesma distância. O sol fazia sempre o mesmo caminho, já nem sei qual é o recado que ele se esquece todos os dias de entregar. O mar morde a areia umas milhentas vezes, como um cão esquizofrénico que anda o dia todo a tentar morder a cauda. A paisagem era sempre o horizonte, que nos enchia de suspiros marotos e sonos monótonos.
 Deviamos até ter sido seres migratórios, de paraísos para infernos, sempre que conviesse. Porque os filmes pintam uma maravilha de tela caribiana, mas é porque não duram mais que três horas. Era um saco viver para sempre naquele marmelanco, nos sorrisos sempre inocentes, na coragem sempre brava, na tesão sempre ardente. Eu cansava. Às vezes durante os filmes gosto de ir ao wc para dar uma boa mijada. E sabe-me bem esse intervalo. Filme sem intervalo é sentença.

04 janeiro 2012

Salt



Vou ser poucas palavras e muitos feitos,  dançar com o instinto e construir os filmes sonhados durante a vida toda. Saber ajustar ângulos da minha cara e mostrar olhares que foram treinados durante vidas. Vou conseguir descobrir uma cabana bem baratinha perto da praia, que cheire a velho como nos filmes, e que faça as ondas do mar serem a nossa música de fundo. 
Vamos dormir na areia de dia e fazer amor à noite, de frente à fogueira vigilante. Vamos ser bandidos e pedintes, drogados ou poetas amargurados, nos ouvidos da vizinhança distante. Porque os seus olhos já não vêem cristais a brilhar quando está Sol nem ouvem o canto do ar quando um carro passa. Por isso vamos dançar à volta da fogueira e fazer o culto à deusa que nos dá os peixes a comer. Vamos observar as tartarugas a dar à luz, concretizando assim o seu ciclo de vida. E vamos fazer vigília aos ovos. 
As nossas caras ganharão relevos e contrastes de cores quentes, decoradas pelas chamas. Tornar-se-á a pele mais dura e espessa, a língua mais fresca e a mente terá ancas mais soltas. Vamos aprender a fazer fogo com a madeira, vamos aprender a fazer vida com o mundo.