30 setembro 2011

Ao espelho


Puro fogo de artifício, dos que faz barulho quando é lançado e que se espalha quando chega aos céus. Dos que ilumina o céu que o Sol abandonou, organiza-se meticulosamente para formar palavras de amor e de felicidade, e que cai sobre os curiosos, envolvendo-os na sua viagem aos altos do mundo e fazendo-os levantar as mãos a ver se cai um pedacinho ainda aceso. Depois vem o fumo, pensam que acaba e ainda vêm mais uns quantos animar a malta. É curioso, extravagante, momentâneo e tornado eterno pelas máquinas fotográficas e de filmar.
Só que em casa é aconselhavel manter fora do alcance das crianças, quando algum explode dá sempre nas notícias que o incêndio é coisa brava.

27 setembro 2011

Yes, Chef

Como é que és tão dono de mim e sabes-me tão pouco?
Não te lembra que fui tirado da minha mãe para ficar contigo, por capricho teu. Eu não tenho o mesmo sprint vital que tu, a minha vida não chega a metade da tua. E olho-te, cheiro-te e ladro-te sempre da mesma maneira, quer me trates bem ou me dês um pontapé no lombo. Pensas que eu me esqueço, mas às vezes traumatiza. Poderia triturar-te os ossos da mão ou do pé, mas escolho não fazê-lo.
Eu não apanho a maioria dos bitaites que mandas, acho engraçado como gastas o tempo todo a falar e às vezes pareces um bocadinho otário. Rio-me de esguelha. Mas podes falar comigo, eu sei que a atenção é para mim e entendo que é a tua voz, e tu também não me entendes quando mando vir contigo, por isso tudo bem.
Nem quero que me chames nomes quando for preguiçoso, teimoso ou não cooperar contigo. É isto do meu coração, este bicho maldito está a tomar conta dele e vou ficando velho, sabes? Talvez haja algo de errado dentro de mim. Vais cuidar de mim quando ficar velho? Pensa nisso, porque eu sei que iria se durasse mais que tu. E vê se não te armas em conas quando estiver num hospital ou atropelado por um carro, não me venhas com o "Não consigo ver isto" ou "É mais fácil se não vir nada", porque é-me tudo mais fácil quando estás comigo. Mesmo quando eu grito e tu não percebes.
Não adivinho o que te apetece. Muito menos penso em coisas literárias e filosóficas como tu, para te entender quando te enervas e me trancas de castigo. Que grande porra, tu tens trabalho, amigos, família, conhecidos e até alguns fãs que desconheces.
Eu só te tenho a ti.

23 setembro 2011

O tigre ruge

Já viste se visses o Mundo em alta definição? Com a visão selectiva das moscas, o brilho e as cores vivas como no youtube, o movimento rápido dos olhos de um gato e a calma infinita de um velho da aldeia dos teus avós? Dava para ficares especado perante o mundo, sentado na tua cadeira de marfim com a tua lista de desejos na mão direita ao veres cada pixel, cada tom e cada graduação que o mundo junta todos os dias.
Já viste o tempo que demora fazer isso? Todos os dias? Tenta imaginar e não me digas mais vez nenhuma que não consegues ter paciência. Ele tem-na todos os dias.
É tudo uma viagem, sabias? É uma uma bola-galeria-de-arte que nos mostra a composição das coisas, nos relembra a importância da Luz, que o cheiro é mais doce quando a cor é a nossa preferida, que a água também brinca entre si. Ele tenta explicar-nos isso tudo, só que nós ainda não aprendemos a língua dele. Já dizia a tua avó que a casa esconde mas não rouba, e o teu avô que isto pode estar à vista, mas não estar visível. Vês? Nem é  tão complicado assim perceber, é mais uma brincadeira que nos explica porque é que o Mundo gira. É tontinho.
Se eu te disser que não trocava o Mundo bom e mau pelos meus sonhos preferidos que tenho à noite, acreditavas? Eu talvez acreditasse em mim por saber que quando aprender a ver, irei descobrir coisas que nunca sonhei existirem.

22 setembro 2011

E vai um tinto teu por esta

Eu apaixonei-me por tudo porque tu não querias ser o meu mundo. Tinhas medo, sempre tiveste. Eu intimidava-te, intimidado por ti. Nunca quiseste surpreender-me, provar que eras romântico, o melhor na cama, que fazias os impossíveis por mim e que não havia poeta como tu. Nada disso. Querias antes poder andar comigo na rua e sentires que caminhavas com um amigo, mais que tudo, e que se caísses ou tropeçasses, que não se me afligia o coração, mas sim que risse de ti, porque é o que os amigos fazem. Beijas-me a testa quando vais embora, fungas quando estás constrangido e aproveitas-te do meu colo para pores os teus pés quando te sentas no sofá. E bebemos sempre vinho na tua casa, porque tu gostas e não interessa se a mim tanto me faz.
E nem tens medo de mim quando te grito, levanto a mão e te beijo depois, te chamo de puta ordinária ou de otário. Porque depois fazemos amor e tu sabes que és o Álvaro. Nem eu tenho medo de perder a jornada que é a nossa relação, os teus papéis escritos nas paredes do quarto de poemas longos e alucinados - e tu sabes, porra, que eu odeio poesia -, nem os vinhos tintos, nem a tua grande personalidade. Nunca te perco, porque nunca te tive.
Eu apaixonei-me por tudo porque tu não querias ser o meu mundo. Nunca te achaste grande o suficiente para quereres sê-lo. Tens boa noção da merda que és, e que somos. Eu apaixonei-me porque só quiseste fazer parte dele, continuaste sempre a ser o Álvaro de Campos que conheci.

19 setembro 2011

Hipster

Quando as flores tocarem música e os insectos forem só de brincadeira, as meninas puxarem aviões em prova do amor aos namorados que guardam golfinhos em aquários gigantes lá em casa, as multimilionárias casarem com um homem que já foi mulher e sem fazerem a mínima ideia disso, os carros serem extintos e invejosos dos helicópteros, os meninos de ginásio fazerem braço de ferro com robôs e o presidente ser o mais pobre do país, os teus melhores amigos forem hologramas e o show de luzes da cidade tiver uma cascata que é na verdade um relógio, a telepatia for desenvolvida e Marte ter derrotado Algarve como capital portuguesa das férias, as pedras da calçada forem pintadas com sorrisos, o teu problema for o facto de não teres problemas, as casas tiverem amortecedores e o terraço do teu apartamento forem as nuvens do céu, já não existirem computadores porque os smart phones tomaram conta do assunto, as mães escolherem os sexos dos bebés, tomar banho for um rotina horária, os pelos no corpo do homem já forem extintos e teres um chip atrás da orelha porque cartão único é tão pouco prático, os palcos de teatro tiverem elevador, a tua chávena de café for metade quente e metade gelada, usares lentes de contacto para o sol e implantes subcutâneos nas costas, as fotos com roupa tornarem-se um escândalo mundial e o pavor ao canibalismo for posto em ruínas na assembleia, uma raça perfeita for-se desenvolvendo involuntariamente,  os albinos meterem inveja aos arianos e a tua filha dormir com uma chita sem fome no quarto,   as estradas das pontes tiverem tapetes rolantes para os carros pouparem energia, usarem tsunamis fracos para lavarem as ruas da cidade mais rápido, o chão da tua varanda for feito de vidro transparente, a água for um luxo e os prédios tiverem rodinhas para poderem deslocar-se em caso de emergência, o teu robô de estimação disser que te ama, o sexo só meter graça se não houver penetração, os candeeiros do teu quarto estiverem implantados dentro do teu colchão, descobrirem que as árvores afinal dançam, a polícia for átomos infiltrados que estão na tua casa, o teu roupeiro funcionar por telecomandos e inventarem martinis e vodkas sem álcool, conseguirmos trazer os dinossauros de volta, as discotecas mais in's do momento  forem dentro de carrinhas brancas transformadas lá dentro e os saltos altos fizerem massagens aos calcanhares enquanto as senhoras os dominam, congelarem corpos para trazer-los de volta daqui a uns 143 anos, o presidente dos EUA for um jovem clonado e os padres fizerem nudismo em praias exclusivas para freiras nudistas, aí sim, aí a gente fala.

13 setembro 2011

Dorme bem,


Já viste a ironia, Mãe?
A pessoa que mais amo levar-me a ter o pior dia da minha vida.
Os sábados, dia de limpeza, já começavam a soar-me estranhos: andavas a comprar ácidos que nunca compraras antes. E as visitas à farmácia já eram semanais e eu não sabia o que se passava. Tinha falado com o psiquiatra dias antes e, segundo ele, nada tinha piorado.
Ajudava-te a sorrir, com as minhas piadas de 7ª classe que sempre apreciaste na primeira fila. Ainda te ajudava a levantar, a andar e a ires dormir, ignorando a pena que sentia ao lembrar-me de como eras linda e apetecível e perfeita quando nova. Foste um ídolo. Ainda dormia contigo e ainda fazia comer para ti para me lembrar do amor que recebia quando a fazias para mim.
Ontem deste-me um tiro grande ao deixares-me sem alternativa. O dia durou várias eternidades de tão eterno. Não pude queixar-me de falta de tempo: todas as questões eu questionei, tudo o que queria conhecer de mim conheci, todos os defeitos apontei e condenei em mim, todas as emoções e sentimentos eu senti. E restou-me tempo para flutuar naquele chão do teu quarto.
Estavas perfeita ao meu jeito, à minha mãe, deitada na cama com os cabelos crespos e brancos despenteados e vias "os teus homens" acção na TV era tudo para ti. Foi hoje. Só pode, porque lembro-me de tudo. Do ar quente, o cheiro a ti, o edredão branco, a almofada sobreposta a outra e tu a olhares para mim como quem pedia para te deixar para me poderes deixar. Passei a mão pela tua cabeça, penteando-te o cabelo velho que para mim ainda era mais perfeito que alguma vez imaginei neste blog. Não falaste porque os olhos diziam e pediam demasiado.
Eu fiz, mãe. Não ia deixar que a morte escolhesse quando seria a hora. Sempre foste senhora de ti e ias decidir quando e como ias ter com o suspenso. Não ia deixar que a dignidade te fugisse na hora das cortinas fechadas e da salva de palmas ao drama que foi a tua vida. Fui buscar os comprimidos, dei-te incontáveis e apreciei aquela demência tua na dificuldade de beberes um copo de água e tomares um comprimido. Apreciei os lábios ansiosos, os olhos procuradores, as mãos de unhas perfeitas trémulas, a cor mulata que de pequenino tanto invejava. Sorriste. Bebeste o ácido e sorriste pela última vez. Mas eu não vi bem porque chorava-me a alma e o corpo juntos em sintonia nunca sofrida.
Deitei-me a teu lado e aconcheguei-me a ti em forma de concha. Como fizemos toda a vida, lembras-te? E deixei-te ver o fim do episódio. E senti o teu fim quando paraste de respirar. Foi agora, lembro-me de tudo. Estavas tão doce, acariciei-te a tarde inteira e chorei colado a ti, minha princesa das vidas mal compreendidas. Apertei-te mais a mim, aconcheguei-te mais ao meu corpo e descansei a cabeça no teu pescoço deitado. Foram muitas eras que fiquei a ver TV contigo naquela tarde de quarto escuro e quente. Pedi ao teu deus para fundir-nos e queria que ficasses ali assim, quieta, perfeita, ainda quente, comigo. Só nós os dois. Para sempre. Juntos.
Chorei, perguntei, chorei, prometi matar o teu deus e o meu diabo também.
Depois ficaste fria. De costas para mim, fechei-te os olhos sem poder ver-te a cara e deitei-me no chão do quarto. Não sei, não me perguntes porquê. E foram mais 34 anos de luz que levitei sobre o tapete sem pestanejar, alma anestesiada pela tortura.
Corroeu-me a alma toda. Já não me tinha por não te ter. Levitava no vazio porque o mundo tinha acabado porque o único Deus que existia aqui eras tu. O que é que se faz quando se descobre que Deus não existe e que não há, na verdade, uma razão para viveres senão fazer o bem para poder ir para perto dele? E tu foste. Não disseste "Xau", mãe. Só sorriste. E eu nem vi.
Porque é que lutaste até aos últimos dias para eu poder ser feliz se, no fundo, sabias que eu não seria feliz sem ti?
Eu amo-te, mais que tudo e como nunca.

12 setembro 2011

Dá-me água

Tens um toque forte de adolescente quando dormes, sabes?  Transformas-te completamente na menina de dezassete quentes anos de praia, scooter e cartadas com os teus amigos rapazes. Raptas corações ricos e manipuladores, voltas a fazer a vida a servir mesas de restaurantes e a tua pose é de cheerleader que não quer pré-ocupar-se com a casa dos trinta.
Tens um cheiro mais doce, a respiração é convidativa e a tua presença passiva. Ironia, não é? É só na cama que deixas o forte cair? É por isso que nunca tens sono, que não adormeces à tarde.
Quando voltar a dormir contigo, vou perguntar-te se é mesmo real o punho forte, os dentes cerrados e a presença omnipotente de irmã mais velha que teve de crescer demais para poder viver. Um dia pergunto-te isso. E digo-te que te amo.

07 setembro 2011

É preciso é saber saltar!


A chuva só tem charme se for miúda em noite de calor. Com postes de luz bem acesos e cheiro a perfumes doces de Inverno porque é preciso ter uma boa recepção à grande bata transparente, que nos espelha o alcatrão da estrada para podermos verificar a meticulosidade dos sobretudos.
Vê-se sono no rosto das crianças que coçam os olhos num acto de carícia, brilho nos olhos dos meninos de ginásio com a pastilha na boca e fumo nos bigodes dos senhores vestidos a Hugo Boss que seguram a sua cigarrilha entre o polegar e o indicador. Os universitários apaixonam-se pelo trabalho eficiente dos postes de iluminação porque a vida é um palco. As meninas adolescentes ficam com medo de se ver a pobre da cueca que não trouxeram por baixo da saia. As mães compram a fruta portuguesa na estação, de volta ao trabalho e os cães, lá em casa, pedem para vir ver um pouco do espetáculo que é o mundo pequeno.
Cheira a castanhas, que fazem lembrar algodão e os carros sorriem brilhantes pelo banho diário. E as gotas, as gotas correm pelo carro enquanto este rompe a estrada e o vento. Atravessam gatos pretos na rua, mendigos dignos de personagens de banda desenhada e pobres artistas que cantam e tocam o mau inglês aos olhos da hospedeira que volta a casa.
E os caixotes do lixo já vazios e de cheiro neutro seguram papéis onde está escrito que o mundo é um circo...

04 setembro 2011

Cartas ao coração III


Menino ouro, comprimido em papéis
feitos de academias circenses e florestas racionais.
Menino rico, de unhas limadas e polidas
mimado por papel descartável e ensinado por militares de guerras frias.

Não podes pensar que é assim. Ao menos durante o dia. Tens de ter confiança no que ouves, na palavra que te é ensinada. Porque ao fim ao cabo, tu és um astronauta. Exploras um universo cujo não sabes quanto medir, quanto ouvir e quanto saber de ti o que tu queres saber dele. É como entrares num quarto escuro e falares com um estranho durante horas e continuares a não saber nada dele. Mas ele sabe quem tu és: a luz que incidia em ti quando entraste por aquela porta foi o truque de magia. Foi o suficiente para te ver por meros segundos, que podem relativamente durar anos.
O teu mundo ainda é de cama, com canecas coloridas de onde o vapor do leite quente sai, mantas que dormem aconchegadas ao teu corpo cheiroso de inocência, candeeiros de mesinha de cabeceira que fazem relevo a tudo o que te rodeia e de onde vais buscar os monstros de que tens medo e com livros ilustrados que ainda não sabes ler. Ainda resides no sonho, considerado perfeito aos sábados e domingos, porque os adultos por vezes são uma grande merda de chatos e tu não percebes a deles. E juras que quando fores grande, não vais ser como eles. E esqueces-te que quando fores grande, a infância é menosprezada e as promessas esquecidas.
Eu perdoo-te a ignorância, a que chamo por ética inocência. Porque os teus dedos são arredondados para simpatizarem com as bochechas rechonchudas que seguram os caracóis loiros quando dormes enrolado na manta verde sobre o lago de transparência que o mundo é, perdoo-te. Desde que sorrias, para me lembrares de que o meu sonho também é feito de ti.

01 setembro 2011

Hórus


O manto grosso de pelo de ovelha já não lembro quanto custou, porque a luxúria não tem preço. Aqueci a caneca feita de bambu com chocolate quente e vesti o pelo bruto. O manto arrastava-me pelos pés, limpando o sujo que os meus pés descalços deixavam pelos diamantes incrustados no chão de mármore preto representando o céu. O cadeirão alto e estreito, forrado a pele humana albina confortou-me os glúteos trabalhados e olhei para o mundo através da pequena janela monitorizada.
Não senti falta da cama real, nem mesmo quando o chocolate quente acabou e o bambu esfriou. Porque o Homem é sempre Senhor do seu palácio.