Quando era pequeno, sonhava fazer parte dos filmes e dos desenhos animados que via na Tv. Mas nada disso tinha, assim que a Tv desligava e Lucas via o seu próprio semblante despenteado naquele quadrado preto que a televisão se transformara. Crescera com poucos amigos, sonhara dentro do quarto durante décadas.
Hoje passeia pelas ruas lisboetas a caminho do discreto trabalho da mãe. Sapatos engraxados e um sobretudo bem estimado, secretamente comprado na feira da ladra. Na mala que traz vêm apenas algumas pastas e um casaco suplente, caso faça muito frio. Os seus passos são metódicos e fazem barulho sempre que a sola bate no alcatrão gasto do passeio. Chega ao prédio e abre a porta, marcando o código que a mãe lhe dera para poder entrar em «ocasiões especiais». Subiu silencioso o elevador, enquanto ajeitava o cabelo já oleoso e espremia as borbulhas sebentas que os clientes viram, no seu trabalho. Bate à porta só com um toque bruto, o sinal de que era ele.
«Entra» foi tudo o que ouviu da cara transpirada da mãe ao abrir-lhe a porta. Dirigiu-se imediatamente à cozinha, onde estavam ali desmembrados e sem pele o tronco e um membro inferior de Xico. Viu o sangue derramado pelo lavatório e algumas pingas no chão, mas não se preocupou: a patroa não iria, com toda a certeza, ver. Lucas pegou numa faca grande e continuou a cortar o tronco com todo o prazer infernal que aquela tarefa, que lhe fora ensinada desde pequeno, lhe dava. Enrolou o corpo desmembrado num saco de plástico e colocou-o dentro da sua mala, suficientemente grande para albergar o morto. Sentiu que aquele dia iria ser, finalmente, concretizado.
Nunca lhe tocou à alma o sofrimento da família de Xico perante um familiar perdido, um corpo desmembrado dentro da sua mala. Seria só mais um, no meio de tantos outros anos que matara. Iria come-lo ao jantar, com o maior prazer e paz possível, sob a companhia da sua família disfuncional e sinistra.
O telemóvel tocou. Atendeu:
"Já temos o peru" - confirmou, com a alma fria mas contente por mais um jantar celebrado.